... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 49 - Janeiroro 2013

Editorial

For last year's words belong to last year's language
And next year's words await another voice.
And to make an end is to make a beginning.
~T.S. Eliot, "Little Gidding"

Olhando além do horizonte, através das paredes, levantando a cabeça acima das massas, chega TUDA Janeiro - Janeiro TUDA, em seus agora 5 anos de (r)existência!

Parabéns, companheiros!

Ano Novo Vida Nova!
não há jargão mais batido
ou coração mais partido
em acreditar nessa trova
já que sempre se prova
que até o que muda é parecido
em TUDA acabo convencido
que é o  velho que se renova.

Posso mudar a rima mas não o tema
poema raro é o que explica e rima
ou prima explicar sem muito poema
ou suprema rimar, e sem sentido, declina.
Mas falava de novo do novo - novo ano, vida nova
trova essa, que embora seja da boca pra fora
cabe a cada um engolir, e fazê-la da boca pra dentro
que o tempo é esse, homem, e a hora é agora.

Além dos já conhecidos pyndahýbicos, deste e de outros mundos, esta TUDA aborda os temas do tempo, da perda, e do (re)nascimento, busca memórias em lugares passados e reflete na importância que tudo isso que a nós se apresenta em forma de necessidades diz ter. Mais leve que o ar, homenageia Lêdo Ivo, pela morte, e Ruy Espinheira Filho, pelo aniversário & poesia.

E como sempre, desnecessário dizer, TUDA traz muita coisa boa, e novidades também. Confiram na Dívida Interna.

QG da TUDA
Fotomontagem de Eduardo Miranda

É isso aí companheiros, na dura LabUTA do dia-a-dia, que embora seja dura para todos, tal dureza pode ter diferentes densidades e resistências, podendo umas serem duras como concreto - ou diamante - e outras mole como petróleo - ou merda. Que se fosse pedir algo nesse ano, seria para que os crimes contra a humanidade (eu, você, e mais 99% dos cidadões desse mundo) que os banqueiros cometeram fossem devidamente punidos, mas este que vos chega deixou de acreditar em fadas há muito, e tem ciência do absurdo que acabou de escrever, portanto, se fosse mesmo pedir algo, que fosse, como já dizia o poeta, em outras palavras, "... e que a paz faça morada na mente dos homens de má-vontades, porque os de boa-vontades ja a tem!"

Nota: 26 de Janeiro de 2013
serão 9 anos sem o poeta Arnaldo Xavier...
Arnaldo, Axé!

Asyno Eduardo Miranda
o (auto-proclamado) editor
deste porto aimdaseguro da jlha do Eire
oje, sexº dia do primº mez
d este Nuovo Anno Domini de MMXIII

Dívida Interna

Matteo Ciappelli - Tortuta Quotidiana
photo manipulation by Eduardo Miranda
Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Eduardo Miranda

Revisão
dos autores

Participam desta edição:
Almandrade, Aristides Klafke, Arnaldo Xavier, Cesar Cruz, Chris McMorrow, Chrissie White, Dorival Fontana, Eduardo Miranda, Idris Khan, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Lêdo Ivo, Marina Alexiou, Matteo Ciappelli, Mitchell Houseman, Paulo Leminski, Pedro Du Bois, Pysar Yurii, Plínio de Aguiar, Ronald Augusto, Roniwalter Jatobá, Ruy Espinheira Filho, Santiago de Novais, Souzalopes, T.S. Elliot, Tomasz Bagiński, Val Byrne, Vladimir Kush e Xarathecat.

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

Zen Weapon - xarathecat

(...)

41
Abajour
Mini-saia
Pétala lilás

42
Juízo Final
O fim
Da picada

43
Rio
Louco passa
Babando

44
Yansãngra coração
Sinuoso vermelho luminoso
templo em chamas

45
Flecha’zul
Rasgacooração
amarelo

46
o céu de chapéu roxo passou
pegando fogo
pelo pássaro

[ in Arma Zen, livro inédito de Arnaldo Xavier ]

Poesia - Souzalopes




Manifesto do Partido Comunista
em cordel
Anônimo de Souza

(...)

3 – O socialismo e o comunismo crítico- utópico

Esses sistemas fundados
Ainda naquele momento
Já compreendiam bem
A ação dos elementos,
O antagonismo de classes
E seu desenvolvimento.


Foram quase evangelistas
Pregando que toda ação
Fosse mansa e pacífica
Sem qualquer arma na mão.
Por isso, tudo findou
Em sonho e divagação.

(...)

Poesia - Aristides Klafke

Morning window, by Pysar Yurii


Confesso que vi o vento — esta manhã —
passar disfarçado de janela por minha violeta
Sim, esta manhã, confesso que vi o vento
passar disfarçado de violeta por minha janela
Assinei, como vento, esta manhã, minha sentença final:
Execução por sintaxe, lavra por lavra, sinal por sinal
Estava noutra esfera esta manhã. Comovido da vida
Pensava em bigorna, ferradura, carabina, roda, espora
Minha alma quer martelo agora – amalgamar esta manhã
com a manhã de amanhã, é o que mais ela quer...
Minh’alma algemada ao caos, feérica e furtiva
Essa coisa dura de dupla naturalidade, alminha mimada
Alma desdenhada que clama, reclama, implora catarse
Adora promover tempestade a troco de nada
Agora, fervorosa, quer que todos saibam disso

[ in "Quebrada", livro ainda inédito de poesia de A.S.Klafke ]

Poesia - Plínio de Aguiar

Idris Khan

Despedida
A minha Mãe
in memoriam

Adeus
horta.
Estou entre texto e leira deserta
mãos com terra de raiz arrancada
cheiro de pedra sangrada.

Adeus
velha.
Pouco percebi de teu riso protetor
porque eram eu, eu e mais eu
acumulando-se animal em mim e por mim.

Adeus.
Meu pai nunca de ti saíra ileso
e nunca entendi o espelho pequenino
morrendo sem pressa em tuas mãos.

Poesia - Santiago de Novais


Ilustração enviada pelo autor

Eupoema

Um coração mordido por vampiros
Alvo
Tenro
Terno
O espírito desossado por palavras

Ávidas
Grotas
Crostas
Não tenho medo morrer se morresse não seria eupoema
      Errava
Apêndix: Não sonho destruído e nem concretizado.
Ser um, sendo sonhado.

Poesia - Dorival Fontana

Dreamcatcher, please catch my dreams - Chrissie White

Real

Os sonhos não envelhecem,
adormecem... (na alma).

Os sonhos não morrem,
são eternos... (submersos).

Os sonhos não se realizam...
o desejo configura as formas.

Os sonhos são autênticos...
alimentam uma vida.

Perecível sonho...
que não vive.

Previsível vida...
que não sonha.

Poesia - Pedro Du Bois

Vladimir Kush - Ripples on the Ocean

Sobre Águas

Na água
fervente
ausente
resseco a terra
onde me instalo:

destruo no caminho
as margens e sobre
a linha
restante
resto
na água
gelada
da tormenta.

Na água restante
afogo pensamentos.

Poesia - Marina Alexiou

Ilustração enviada pela autora


As tragédias como recompensas da natureza humana
Fábulas incontestáveis das Moiras em sua morada feita de escuridão sem limites e ornada pelos luminares resplandecentes que são os deuses
As peculiaridades dos destinos mortais envoltos pela Fortuna e pela Fatalidade contam o trajeto vivido na penumbra de um itinerário fantasiosamente descrito pelos dramas humanos
O que pedir? Para onde erguer os braços em apelo? Como temer com sabedoria?
Será real a história de descer à luz com o quinhão às costas?
Ou este sonho, o da existência, em sua grandiosidade serve apenas para aproximar as reminiscências mais febris que, mesmo assim, não nos pertencem?...
Almas quais borboletas se erguem fragilmente de seus casulos sombrios e despertam para o instante do alento que as anima a ser....mais uma vez.
Porém, quando se é cortejo a seguir o celeste itinerário, as asas batem dando a conhecer e reconhecer em todo o seu espectro de cores a sua fabulosa origem.
Caminho inverso o de subida inicial como a desdenhar da sorte, porém, verdadeiro em sua mágica eternamente redentora,
Da dança das Graças dançarinas de mãos dadas com a Necessidade.

Crônica - Roniwalter Jatobá


Recordações da Rua do Cais

Tempos atrás, meus dois filhos me indagaram sobre como tinha sido minha infância. Contei que só fui ver luz elétrica aos doze anos de idade. E, assim mesmo, do escurecer às 10 da noite.

Campo Formoso (BA), 1960: era quando o gerador movido a diesel, na agradável cidadezinha do sertão baiano, produzia com força de vaga-lumes um fio de energia, mas, para o deleite de todos, era possível encher casas e ruas de luzes amarelas, embora fracas, e acionar no ocaso do dia o serviço de alto-falantes com as músicas da Rádio do Benigno.

-- Foi a partir daí que, como um personagem do escritor colombiano Gabriel García Marquez, vim a conhecer o gelo. E, claro, uma geladeira – brinquei com eles, numa referência literária ao mundo mágico da obra-prima Cem anos de solidão.

Urbanos, os dois meninos não me levaram muito a sério. Jurei que era a mais pura verdade. Acostumados à tecnologia eletrônica, disponível em seus apartamentos na metrópole, relegaram por instantes o meu relato à imaginação do ficcionista.

-- Ah, um contador de histórias.

Continuei em frente. Disse que naquela época vi o primeiro filme, aquele que raramente a gente esquece: um policial chamado A Estrada 301, visto num sábado à noite, junto com os internos do Ginásio Augusto Galvão e as internas do Colégio Nossa Senhora de Fátima, no Cine-Teatro Santo Antônio.

Televisão, explico para meus meninos, só fui ver bem mais tarde, numa rápida viagem a Salvador, quando também me deslumbrei com o mar.

Não éramos tão miseráveis, no entanto. O pai e a mãe, que moravam no arraial de Bananeiras, possuíam um rádio a pilha, da marca Telespark, um caixote de madeira que captava vozes, melodias, chiados e ruídos estáticos diretamente do céu, naquele fim do mundo.

A luz elétrica foi o meu primeiro contato com a modernidade. A partir daí, tive muitos sonhos na vida. Um deles era ir para a cidade grande e ser motorista de táxi. A ideia surgiu depois que ganhei um presente da namorada. Alguns anos a mais, ela (E.) me deu carinho e amor nos anoiteceres da Rua do Cais, e muito de sua sabedoria, mas, que, infelizmente, não fui capaz naquele momento de aproveitar por modo da minha real infantilidade.

Um dia, E. me deu de presente o livro O fio da navalha, do escritor inglês Somerset Maugham. A obra narra a história de um homem em busca da fé. Assustado pela presença da morte durante uma guerra, ele abandona uma oportunidade de riqueza e prestígio para procurar, em viagens pelo mundo, sabedoria, paz e felicidade. Ao final do aprendizado, ele vai ser taxista em Nova York. Seu argumento para a escolha era simples.

-- Sou muito sensato e muito prático -- concluía em seu raciocínio desprendido de dinheiro. -- Como chofer de táxi não precisarei trabalhar mais que um certo número de horas, para ter cama e comida e me prevenir contra a depreciação do carro.

Fui, porém, por outros caminhos. De uma infância sem luz, hoje navego na internet. Se Cabral levou meses para chegar ao Brasil há mais de 500 anos, posso em minutos saber como está a temperatura das águas do rio Tejo, em Lisboa.

Mas, às vezes, não sou tão moderno assim e busco a lição do passado. Sei que cada infância é diferente como as águas que rolam num rio. Muitas vezes, só, vou à procura do tempo de menino, para mergulhos no tempo.

Abro a janela do apartamento, ao lado da Avenida Paulista, cubro o computador com a capa preta, apago todas as luzes, e olho para o lado mais escuro de minha rua. Ali, sinto a antiga visão do anoitecer, em esquinas perdidas na bruma da Rua do Cais ou da estação ferroviária de Campo Formoso. Vejo o mesmo negrume que fascinou uma criança acostumada com suaves remansos de riachos ou a distante estrela que pulsa nos confins do universo.

Nessas noites fictícias em São Paulo, mas recheadas de esperanças, sigo com o pensamento longe, na vida, em algum lugar do futuro.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins

Em Um Quente E Cáustico Dezembro

Dezembro, fim-de-ano, a sensação de relaxamento diante do ano que estava acabando - é preciso fechar para balanço, pensar no ano que se foi - filosofava Josias Germano, em meio a um engarrafamento matinal... fora um ano de realizações, a compra do apartamento, a conclusão do mestrado, a perspectiva de uma futura ascenção profissional, o título da Copa Sul-Americana conquistado heroicamente pelo tricolor paulista... mas nem tudo eram alegrias... Pedro Venâncio seu grande amigo se fora... assim como se foram também grandes nomes das artes: Oscar Niemayer , Dave Brubeck e Décio Pignatari... ele sabia que o poeta nunca fizera algo como a maquise do Ibirapuera ou o álbum “Take Five” , mas durante a faculdade fora aluno de Pignatari, ou seja conhecera-o pessoalmente... Décio não se tornara seu amigo... mas notava que o mestre tinha mais satisfação em responder suas indagações aparentemente vindas do nada, do que aquelas perguntas previamente elaboradas, vindas de determinados alunos com intenção em demonstrar conhecimento refinado...

Como o trânsito estava definitivamente caótico, o nosso protagonista resolveu ligar o rádio e descobriu que um acidente fatal com motocicleta literalmente parara a capital paulista - o trânsito de São Paulo é igual a saúde de alguém muito idoso- refletiu - qualquer resfriadinho vira pneumonia... qualquer caminhão quebrado, acidente com moto, atropelamento gera um a lentidão monstruosa afetando a milhares de cidadões...

E então a radio toca o seu refrâo:

“Vão bora! Vão Bora!
Tá na hora! Na hora!”


Como ir embora nesta lentidão... é um absurdo - pensou Josias Germano - chega desta rádio reacionária que só exibe essa musiquinha de manhã, na hora de entrar no trabalho, nunca toca este refrão na parte da tarde... como que só tivesse hora para entrar no trabalho, nunca para sair...

Josias Germano olhou o semáforo que devido ao engarrafamento não conseguia transpor, lembrou-se então que a palavra semáforo é derivada do termo ”semeion” que em grego significa signo... a mesma raiz da palavra semiótica... recordou-se do título de seu trabalho de conclusão de curso na pós-graduação “Semiótica na Sinalização de Trânsito – paradigmas e sintagmas da sinalização viária” ... notou também que o “semi” da semiótica estava degenarado: semijóias e carros seminovos eram um indício da degeneração dos signos da comunicação moderna...

Lembrou-se então que no porta-luva do automóvel havia um exemplar de “O que é Comunicação Poética” de Décio Pignatari, livro que usara como subsídio a seu trabalho de graduação... Como o trânsito não andava e o calor começara a se tornar ensandecedor, resolveu ler trechos da obra do poeta de Jundiaí:

“Para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Ele vive o conflito signo vs coisa. Sabe (isto é, sente o sabor) que a palavra ‘amor’ não é o amor - e não se conforma…

De repente então o estrondo, o motoqueiro indo embora apressado e o espelho retrovisor direito virado....

Josias Germano xingou a “raça dos motoqueiros”, como costuma a fazer com a “raça dos taxistas” - O mundo está a cada dia pior, estamos todos perdendo a noção das coisas – recordou-se então daquele poema de Torquato Neto que dizia:

“É preciso que haja algum respeito
ao menos um esboço:
ou a dignidade humana se firmará a machadadas”


Pensou então em comprar um machado... lembrou-se que no início do próximo ano iria a Assis, no interior de São Paulo, visitar seus sogros, e que nesta cidade havia uma loja chamada “Casa das Miudezas”, que vende tudo: anzóis, artigos de papelaria, veneno de barata, botinas, cedês virgens, armarinhos e até servia cerveja em um pequeno balção – com certeza deve ter machado – refletiu o nosso amigo...

Depois ficou com pena do motoqueiro que morrera na Marginal e estava causando todo este transtorno... lembrou-se então da canção de Chico Buarque que dizia

“morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego”

recordou então o arranjo que Rogério Duprat havia composto para “Construção” então, como o trânsito não andava mesmo, resolveu ler mais Pignatari:

O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e re-criando a linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo.”

Voltou então a lembrar-se de Torquato Neto e de sua amizade com Pignatari, o poeta de Teresina homenageara o semiótico de Jundiaí no título da canção que compusera com Gilberto Gil e também da coluna que publicou no jornal Última Hora: “Geléia Geral”, retirado da frase de Pignatari:

“Alguém, na geléia geral brasileira, tem de exercer as funções de medula e osso”

... então do nada apareceu outro motoqueiro e bateu de leve no vidro do carro de Josias Germano... o nosso protagonista se assustou, porém o motoqueiro apontou para o espelho retrovisor revirado e colocou o retrovisor de volta à posição correta... o nosso protagonista fez sinal de positivo e deu um leve toque na buzina em sinal de aprovação... o segundo motoqueiro partiu amistosamente...

Josias Germano então julgou ter presenciado uma das epifanias, manifestações divinas em pequenos atos do cotidiano, tão comentadas por James Joyce... pensou então que o mundo não estava tão boçalizado, que existiam pequenas demonstrações de que nem tudo está perdido...pensou então que quando fosse a Assis não precisaria mais comprar o machado.

Crônica - Cesar Cruz


O Vitrô por Analista

Escritor que é escritor tem que ter duas coisas: um estúdio e um analista. São itens essenciais para um escritor ser um escritor de verdade. Nenhum escritor vai confirmar isso, pois soa esnobe, e o esnobismo para nós escritores não pode se evidenciar, assim, tão claramente.

O bom esnobe, você sabe, é mestre numa certa altivez revestida com uma fina camada de humildade. Pode o amigo reparar: em muitas das crônicas que lemos por aí em jornais e revistas, os escritores deixam escapar vez por outra um “o meu analista disse que...” ou um “estava no meu estúdio quando...”.

Há, enfim, um inconfessável orgulho em se ter um estúdio e um analista. Ai de mim, que não tenho nem um nem outro!

Pois saibam todos que no ano de 2012 eu consegui diminuir esse abismo existencial que me afastava dos meus pares.

Mudei-me pra um apartamento antigo que tem duas coisas fantásticas, que se não substituem analistas e estúdios, quebram bem o galho.

Uma delas é o quartinho de empregada, sonho antigo que agora realizei. Um quartinho de empregada só meu! Para ser bem honesto, nem com muito esforço daria pra chamar isto aqui, de onde escrevo agora, de “meu estúdio”, já que o espaço mede 1,85 x 2,30m, localizado em região pouco majestosa do lar, pra lá da área de serviço, do cocô do meu gato e das roupas dependuradas no varal; indigno para um estúdio, que deve ser vizinho das partes nobres da casa. Mas o meu quartinho está de bom tamanho para minhas pretensões, planejado por esta minha cabeça calva, é rodeado internamente por prateleiras feitas com restos de compensados envernizados e afixados nas paredes por mim mesmo. Aqui estão meus livros, fotos, objetos antigos do meu pai, além de três jarras cheias de rolhas de vinhos que eu mesmo bebi, um a um.

Que um quartinho da empregada faça as vezes de estúdio, todos podem entender. Mas o que serviria de suplente para o analista? Apresento-lhes o substituto: o vitrô do meu banheiro.

Eu sempre quis ter um banheiro com vitrô. Morei em um monte de casas, mas nunca tive um. Mas eu não queria daqueles vitrôs que ficam em cima da privada e dão vista pra área de serviço, nem os que se abrem para um fosso de ventilação escuro; muito menos os que ficam lá no alto só pra circular o ar, e por onde não se pode espiar sem precisar de um banco. Nada disso.

O vitrô dos meus sonhos ficaria obrigatoriamente dentro do box, à altura do rosto, teria três lâminas paralelas envidraçadas, movidas por uma alavanca no tradicional sistema maxim-ar e, o melhor de tudo, daria vista pra rua. Morra de inveja o leitor agora, pois o vitrô que tenho aqui no banheiro de casa é exatamente assim! E com direito a parapeito azulejado pra apoiar taça de vinho ou lata de cerveja — a depender do clima psicológico do banhista.

Difícil explicar ao amigo leitor o prazer de tomar ali um banho relaxante, bem tarde da noite, com todos em casa já dormindo, e você peladão se ensaboando e bebericando o vinho, o vapor subindo enquanto seus olhos espiam pela janela as ruas próximas escurecidas, com um ou outro carro passando, então reflexões sociofilosóficas sobre o sentido da vida e a decadência da humanidade surgem naturalmente em sua mente, e você avista ao longe algumas poucas janelas acessas, com a brisa fresca da noite a soprar no seu rosto quente do calor do banho.

Pode imaginar algo mais reconfortante e terapêutico?
Com um vitrô desses pra equalizar os desvarios da mente, quem precisa de um analista?
Senhores escritores, abaixo os analistas e os estúdios. O quartinho de empregada e o vitrô do box são a nova onda!

Conto - José Miranda Filho

Chris McMorrow - Dublin Pubs

Encontro de Amigos - Parte 14

Na Irlanda aproveitaríamos a estada para conhecer, na Cidade de Cork, o processo de aproveitamento de material reciclável usado pelos alunos da Escola de Arte no desenvolvimento de trabalhos manuais, ao mesmo tempo em que participaríamos da festa de batizado do bebê de Dona Adriane, esposa do amigo Junior.
Na Vila de Glendalough – Glendalough é um vale glacial no condado de Wicklow, conhecido pelo seu ascentamento monástico fundado no início do século VI por St. Kevin, e destruído em 1398 por tropas inglesas - fica a residência de Mr. Forster e sua esposa. Eles não têm filhos, mas já fazem planejamento para o próximo ano. Querem ter um casal, dizem.
O tempo nesta época do ano aqui em Dublin é agradável. Frio para os padrões brasileiro, mas sem chuva. Todas as manhãs a neblina encobre a cidade, de horizonte a horizonte numa tênue nuvem cinzenta e gélida. Não se avista nada além da distancia de 100 metros. Parece Londres com seu “fog”. Mesmo assim, à noite, os Irlandeses não dispensam um bom copo de cerveja nos diversos pubs lotados da cidade.

A festa do batizado do nenê de Adriane foi muito agradável. Muita gente compareceu ao encontro realizado num confortável bar da cidadezinha de Kilkenny. Nossa ausência seria tão desagradável para nós, quanto decepcionante para eles, que já nos esperavam à porta do estabelecimento – deferência que nos engrandece e nos deixa sensibilizados. Eles são mesmo muito amigos! De presente, demos, para o casal, uma caixa com 6 unidades do autentico vinho do Porto da raríssima safra de 1986, que obtive através de um lote arrematado num leilão em São Paulo, em Janeiro deste ano. Para o nenê, minha mulher ofereceu um agasalho de lã, todo confeccionado com material reciclável de São Luiz do Maranhão. Muito bonito! Eles ficaram fascinados.

Foreign Words - Paulo Leminski

Mitchell Houseman - Resolution

I woke up flat

I woke up flat
everything was sharp
the sun was up
just did not make sense

Acordei bemol

acordei bemol
tudo estava sustenido
sol fazia
só não fazia sentido

Releitura - Ruy Espinheira Filho

Estação Infinita e Outras Estações é a mais nova coletânea de Espinheira, editada pela Bertrand Brasil, e reúne todo o trabalho do poeta desde 1973.

Em 12/12/12, o poeta, ensaísta, jornalista, cronista, contista e romancista baiano Ruy Espinheira Filho completou 70 anos de vida. Nascido em Salvador, no ano de 1942, Ruy Espinheira Filho passou a infância em Poções e a adolescência em Jequié, cidades do interior baiano. De volta a Salvador no início dos anos 60, graduou-se em jornalismo e obteve os títulos de mestre em ciências sociais e doutor em letras. Aposentou-se como professor de letras da Universidade Federal da Bahia. A partir dos anos 60, Espinheira combinou a atuação no jornalismo com a produção literária. Estreou em livro em 1973, quando publicou o volume Poemas, em parceria com o poeta Antonio Brasileiro. Até o momento, já publicou mais de vinte volumes de poemas e dez de ficção, sem contar os ensaios e participações em antologias. Seu título mais recente de poemas, um pouco anterior à obra completa, é A Casa dos Nove Pinheiros, publicado este ano pela Dobra Editorial. Neste livro encontra-se o poema “De súbito, do nada, uma carta”, que escolhi para este boletim, como uma homenagem ao poeta e aos leitores. Não há como ler este poema e sair incólume. Trata-se de um texto sofisticado que combina reflexões sobre a finitude humana e referências ao convívio e à amizade dos poetas modernistas portugueses Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Observe-se que, ao longo do texto, aparecem em destaque frases dos dois escritores lisboetas.
[fonte: poesia.net]



De Súbito, Do Nada, Uma Carta

1

Sá-Carneiro disse, em carta, não incomodá-lo muito a possibilidade
de suicídio,
mas a consciência de
ter de morrer forçosamente um dia.
Seu correspondente deve ter pensado em tais palavras muitas vezes
ao escrever certos versos,
como, por exemplo
(16 anos mais tarde, com a alma já por si conturbada
de Álvaro de Campos)
alguns de Tabacaria,
nos quais observou que o dono da loja morreria,
como ele próprio,
um deixando a tabuleta, o outro versos,
que a certa altura também morreriam,
como morreria depois a rua onde estivera a tabuleta
e a língua em que foram escritos os versos,
e, por fim, o planeta girante em que tudo isto se deu.
Sim, tais reflexões já tumultuavam Sá-Carneiro,
mas com menos longo sofrimento,
porque logo soube livrar-se delas com
cinco frascos de arseniato de estricnina
em 26 de abril de 1916,
aos 26 anos de idade.
às 8 da noite, no Hotel Nice,
Paris. E assim
terminou o tormento do Esfinge Gorda,
como certa vez se definiu.
E que ainda mais gorda e com mais mistérios de esfinge ficou,
após a morte,
avolumando-se a ponto de mal caber no caixão,
tornando definitivamente impossível que seu enterro fosse levado sobre um burro,
como pedira num poema,
embora tivesse lembrado
(como se antevendo sua última vontade
não sendo respeitada)
que a um morto nada se recusa,
e insistindo mesmo, peremptório:
E eu quero por força ir de burro.
(Não, ninguém se moveu para encontrar um burro capaz
de tal façanha,
ainda que não — como pedido —
ajaezado à andaluza.
Sim, a um morto tudo pode ser
recusado.)


2

Não sei como as linhas acima se escreveram,
pois não havia pensado em nada parecido.
Pelo que recordo, pensara que estava velho,
não propriamente por me sentir assim,
mas por constatar que de então a agora
passara muito tempo.
É a lógica, bastante desagradável:
se muito tempo passou desde a nossa juventude
não há o que discutir: estamos velhos.
Quanto mais tempo, mais velhos.
Sem dúvida, o que de melhor havia no Paraíso,
antes da descoberta do fruto do bem e do mal,
era a ausência de lógica. Não houve nenhuma lógica
na Criação,
as possíveis justificativas do Criador não têm lógica.
Apenas, entediado por tamanha Eternidade,
Ele resolveu brincar de Deus. E, como não havia
nenhuma lógica em tudo isso
(pois só uma absoluta falta de lógica admitiria a criação de algo
tão tentador que poria fatalmente em risco o equilíbrio do Éden),
deu no que deu.


3

Coisas assim é que eu pensava,
quando saltou do nada a carta do poeta
para outro poeta.
Assim me tem sido a vida com frequência:
tarda (às vezes indefinidamente) no que espero
e de súbito serve
o inesperado.
Tudo bem, contando que não venha a lógica
deduzir que eu tenha forçosamente de estar velho
já que de então a agora muito tempo passou.
O tempo, que se oferece ironicamente em Ontem
(que já não é),
Hoje
(que acabou de ser)
e Amanhã
(que, se chegar, não chegará,
pois logo será o que acabou de ser,
o que já não é).
Enfim, envolvido em incômodos
similares aos meus,
e em linguagem bem melhor,
suspirou Ricardo Reis: ... e quanto pouco falta
para o fim do futuro!


4

Ah, o quanto pouco falta...
Aliás, uma característica do tempo: subtrair-se avaramente,
sobretudo quando gostaríamos que permanecesse mais...
Difícil acreditar que faz pouco,
muito pouco,
estávamos todos aqui...
E então, de súbito,
tivemos e temos que
forçosamente
morrer...

5

Bem, Sá-Carneiro resolveu tudo por conta própria,
interrompendo o que sentia como apenas cruel alongamento do tempo;
apagando os remorsos que eram como
terraços sobre o Mar,
deixando-nos as palavras com que também gostaríamos de abrir
docemente
a nossa noite:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Releitura - Lêdo Ivo


Lêdo Ivo (Maceió, 18 de fevereiro de 1924 — Sevilha, 23 de dezembro de 2012) foi um jornalista, poeta, romancista, contista, cronista e ensaísta brasileiro. Era membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 13 de novembro de 1986 para a cadeira 10, sucedendo a Orígenes Lessa. Eis o 1º parágrafo de seu discurso de posse, já como membro da Academia Brasileira de Letras: "Numa tarde de outono, um homem caminha pelas ruas de Londres. O frio e o vento o obrigam a encolher-se no seu sobretudo. Sozinho e desconhecido na metrópole que Verlaine comparou à Babilônia, esse homem é um exilado, expulso de sua pátria por um caudilho taciturno. E enquanto ele marcha entre as folhas que caem, em seu espírito flui a interminável reflexão sobre o seu país que, no outro lado do oceano, vive as turbulências do dissídio e do desencontro. Esta é a imagem que me ocorre de Rui Barbosa, o fundador da Cadeira nº 10: a do exilado." Morreu aos 88 anos de idade, após um mal súbito, em Sevilha.


Acontecimento do Soneto

À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros

versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.

Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,

irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.

Ilustração - Val Byrne

Val Byrne - No Parking in Ardgroom

Video - Tomasz Bagiński

Ensaio - Ronald Augusto



O menos vendido e suas partituras

Na abertura de O menos vendido (Nanquin Editorial, 2006), podemos ler um poema - espécie de pórtico - pertencente à família daquelas peças poéticas que discutem a tópica clássica segundo a qual a arte é simbolizada como um monumento resistente à inclemência do tempo e das intempéries. O poema, assim como “uma música [que] não precisa mais que três minutos./ Um haicai, alguns segundos”, é arte que perdura  e se dá  no tempo. Ricardo Silvestrin, como se lê num poema do seu livro Palavra mágica (1994), mais do que moderno, está no nervo do seu tempo e desde “a nave do novo” de sua viagem textual eterna, inscreve na caverna o vir-a-ser da sua linguagem. E é por esta razão que Silvestrin, mesmo sem dar as costas à dimensão espacial conquistada para a poesia a partir de Un Coup de Dés, de Mallarmé (1897), jamais se esquece de que a poesia ainda é uma arte temporal; ritmo para uma partitura vocal, ou, outra vez, como a música, um som e uma pausa; a sílaba tônica e a sílaba átona. A terra pulsando sob os pés, a voz que voa.


Este poema também representa a outra face da “moeda” que se estampa na capa do livro. Com efeito  e não se deve desprezar, mesmo, a sugestão de efígie: ao poeta o que é do poeta , o artigo / o /, ou o “zero” em cujo centro lemos o poema que dá título ao livro, rodopia diante do leitor fazendo-o pensar, talvez, o seguinte: se é verdadeiro que um poema de verdade, poema bom, pode atravessar séculos e séculos sem perder seu tônus de beleza, por outro lado, pode-se constatar que “às vezes passa um século [ou mais]/ e nenhum fica pronto”, ou nenhum se nos entesoura na memória. O preço pago, portanto, à dureza sempiterna dos grandes poemas, são os longos trechos de tempo em que temos de suportar uma grande massa de obras literárias desprovidas do menor toque de classe. Mas, para a nossa alegria, de quando em quando, exsurgem, do fundo insondável dos infernos da invenção, obras como O menos vendido.

No poema seguinte de “Manchas”, que integra a primeira seção-livro do conjunto de O menos vendido, temos a imagem do leitor como um executante da partitura-poema. Fruindo a chance de ficar de boca fechada, o intérprete dessa “música calada” não obedece a “Nenhuma outra lei/ além da leitura”. A dança das palavras se desenvolve na cabeça do leitor por meio de uma coreografia resumida de gestos, não-figurativa: “Nada soa/ além do silêncio”. Mas o leitor-executante  antípoda do apreciador da prosa de entretenimento sempre submetido à hipnose romanesca  não fica inteiramente alheio, pois na economia da leitura criativa e crítica exigida pela poesia de Ricardo Silvestrin este silêncio com que o leitor tem de se haver, mostra-se ativo, intratável. Portanto, cabe aqui, lembrar e ler o contra-acento, a pausa, esse nada que soa, como um “contratempo”, isto é, podemos fazê-lo participar das acepções de obstáculo, imprevisto, etc., além de “forma rítmica em que o som é articulado sobre um tempo fraco, átono”. Ou seja, lendo às cegas, fora do tempo ou no contrapé, abandonado apenas à lei da leitura, lúcido salvo que fabuloso, o leitor colhe no ar ou num “alugar” a chance de ficar calado enquanto percebe a cada virar de página que “Vão-se os papéis,/ ficam os textos.”

Ficam. Mas, aonde? O poema está sempre num outro lugar: “ponte pênsil do pensamento” ligando o desejo àquilo que não se acha à mão. Assim como o poeta, também o leitor de O menos vendido se rejubila de andar “fora do ponto”. Nenhum dos dois está pronto. Pois, como nos ensina Roman Jakobson, “a ambigüidade se constitui em característica intrínseca, inalienável” da poesia. Portanto, continua o lingüista, não só o próprio poema, mas igualmente seu destinatário e seu remetente se tornam ambíguos. Veja-se este excerto do poema da página 35: “e diante de algo tão vago/ passo a me pintar/ num desenho abstrato/ aos poucos/ dilui-se a figura/ traços que lembram/ quem sou ou o que fui/ agora uma mancha/ branca sobre o branco”.

Enquanto isso, a dessarrumação e a desmesura do mundo servem tão-só de tema ou de signo à fatura do poema: “Algumas palavras/ e tudo se transforma em leveza.” (“Desgramas”, pág. 34). O mundo (do poeta) é apenas povoado de “famílias de palavras”  em que pese, às vezes, ele se achar a muitas palavras de distância. A instabilidade do tecido de fundo do real, esse tablado móvel, não permite que o sentido caia duas vezes no mesmo lugar. Em que bases, então, se dá a experiência simbólica do homem sobre a superfície dissolvente do mundo? Não se espere de Silvestrin uma resposta de enciclopedista a esta questão tão remota quanto kitsch. Sem muitos circunlóquios o poeta nos propõe isso: “a ação [sobre o mundo] é o raio/ o sentido, o trovão/ que às vezes chega anos depois” (pág. 53). Mas, se e quando o sentido chegar, não nos encontrará, isto é, não seremos mais os mesmos, mesmo. Servirá a outro: “estou aqui/ por um tempo/ uma hora/ vou embora/ deixo escrito/ gravado/ algum pensamento/ que seja mais forte/ que a carne/ o sangue/ o osso/ que viva/ no corpo/ de outro”. O poema como estrutura viva ou ultima verba, não dura, em fim de contas, o tempo do monumental granito, nem do monólito; dura o tempo do corpo e seus tendões; o intervalo de suas espiras que constituem idéias.

Volto mais uma vez à metáfora do poema como partitura e de cujo silêncio o leitor-executante obtém a sua irredutível logopéia. Essa metáfora também é cara a Joan Brossa, para o poeta catalão os versos compõem “uma partitura” e “não são mais/ que um conjunto de signos” para a decifração do leitor colaborador. Do ponto de vista de Silvestrin, o silêncio que é sentido, vale dizer, significado ou quase-signo, é o melhor amigo do homem. Ouçamo-lo: “e o silêncio/ é o companheiro/ do homem/ seu fiel confidente/ escuta suas dores/ seus projetos/ é para ele/ que o homem/ fala/ e fala/ tudo o que sente/ o silêncio cala/ e consente” (pág. 63). Na palavra imantada de pausa, silêncio, onde podemos apreciar “os traços fonológicos da pessoa”, Ricardo Silvestrin destaca o humano das entranhas da humanimaldade. Volição e volatilidade do pensamento. Falar sem fabular é a coisa mais tediosa que pode acontecer ao homem, este animal que produz e consome símbolos. Ricardo Silvestrin desentranha o homem do poeta sem nenhuma veleidade moralizante: “preciso de água, luz, pátio, casa, família/ e também de símbolo, coisa que a planta/ e o cachorro/ não sabem/ que precisam” (pág. 57).

E é a partir desta perspectiva da celebração ou da “cerebração” (Alexandre Brito dixit) do pensamento-arte, “o que nasce da cabeça do homem”, que Silvestrin plasma o jornal íntimo de “A poesia de cada dia”, última parte de O menos vendido. Talvez seja esse o momento mais “ex, Peri, mental” do livro. Um poema para cada dia ganho/perdido. Cada poema a consagrar o dia que se dissipa na corrente do presente irredimível. Silvestrin usa a dosagem necessária de antipoesia. Lancinantes anotações à margem do instante precário. Um olhar de flâneur para as coisas belas e feras que se encontram entre ele e o mundo: shows, livros, praia cheia de argentinos, filmes, um lapso como desempregado, um programa de TV, etc. Uma cortina de fumaça (ou de bambu?) diarístico-verbal oscila entre o poeta e o entorno espetacularizado. Num andamento de prosa, Ricardo Silvestrin nos “passa a sua conversa”. Seus filosofemas capturados “na trilha trivial do cotidiano”, como refere Antonio Carlos Secchin no prólogo de O menos vendido. Mas, aqui, em “A poesia de cada dia”, não se trata, a rigor, da fala do poeta ou de suas metáforas: “Que poeta? É só um escritor”, mas sim das notas do escritor, ou, melhor, das cogitações de um ego scriptor, na tenção quase obsedante de transformar a coisa em palavra, mas ao mesmo tempo consciente de que o que ele representa e nomeia não se ajusta à perfeição à bitola do representado e do nomeado. Coisas e palavras falam de lugares divergentes, sua relação é duradoura porque “ambas só conseguem viver na intransigência”. Assim, nesse deambular pelas minudências de um epos do fútil e do útil, onde “tudo é motivo de celebração”, a linguagem continua sendo a viagem. Recordação na tranqüilidade daquilo que, por um momento, intranqüilizou Ricardo Silvestrin com sua maravilha ou sua injúria.