... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 49 - Janeiroro 2013

Crônica - Roniwalter Jatobá


Recordações da Rua do Cais

Tempos atrás, meus dois filhos me indagaram sobre como tinha sido minha infância. Contei que só fui ver luz elétrica aos doze anos de idade. E, assim mesmo, do escurecer às 10 da noite.

Campo Formoso (BA), 1960: era quando o gerador movido a diesel, na agradável cidadezinha do sertão baiano, produzia com força de vaga-lumes um fio de energia, mas, para o deleite de todos, era possível encher casas e ruas de luzes amarelas, embora fracas, e acionar no ocaso do dia o serviço de alto-falantes com as músicas da Rádio do Benigno.

-- Foi a partir daí que, como um personagem do escritor colombiano Gabriel García Marquez, vim a conhecer o gelo. E, claro, uma geladeira – brinquei com eles, numa referência literária ao mundo mágico da obra-prima Cem anos de solidão.

Urbanos, os dois meninos não me levaram muito a sério. Jurei que era a mais pura verdade. Acostumados à tecnologia eletrônica, disponível em seus apartamentos na metrópole, relegaram por instantes o meu relato à imaginação do ficcionista.

-- Ah, um contador de histórias.

Continuei em frente. Disse que naquela época vi o primeiro filme, aquele que raramente a gente esquece: um policial chamado A Estrada 301, visto num sábado à noite, junto com os internos do Ginásio Augusto Galvão e as internas do Colégio Nossa Senhora de Fátima, no Cine-Teatro Santo Antônio.

Televisão, explico para meus meninos, só fui ver bem mais tarde, numa rápida viagem a Salvador, quando também me deslumbrei com o mar.

Não éramos tão miseráveis, no entanto. O pai e a mãe, que moravam no arraial de Bananeiras, possuíam um rádio a pilha, da marca Telespark, um caixote de madeira que captava vozes, melodias, chiados e ruídos estáticos diretamente do céu, naquele fim do mundo.

A luz elétrica foi o meu primeiro contato com a modernidade. A partir daí, tive muitos sonhos na vida. Um deles era ir para a cidade grande e ser motorista de táxi. A ideia surgiu depois que ganhei um presente da namorada. Alguns anos a mais, ela (E.) me deu carinho e amor nos anoiteceres da Rua do Cais, e muito de sua sabedoria, mas, que, infelizmente, não fui capaz naquele momento de aproveitar por modo da minha real infantilidade.

Um dia, E. me deu de presente o livro O fio da navalha, do escritor inglês Somerset Maugham. A obra narra a história de um homem em busca da fé. Assustado pela presença da morte durante uma guerra, ele abandona uma oportunidade de riqueza e prestígio para procurar, em viagens pelo mundo, sabedoria, paz e felicidade. Ao final do aprendizado, ele vai ser taxista em Nova York. Seu argumento para a escolha era simples.

-- Sou muito sensato e muito prático -- concluía em seu raciocínio desprendido de dinheiro. -- Como chofer de táxi não precisarei trabalhar mais que um certo número de horas, para ter cama e comida e me prevenir contra a depreciação do carro.

Fui, porém, por outros caminhos. De uma infância sem luz, hoje navego na internet. Se Cabral levou meses para chegar ao Brasil há mais de 500 anos, posso em minutos saber como está a temperatura das águas do rio Tejo, em Lisboa.

Mas, às vezes, não sou tão moderno assim e busco a lição do passado. Sei que cada infância é diferente como as águas que rolam num rio. Muitas vezes, só, vou à procura do tempo de menino, para mergulhos no tempo.

Abro a janela do apartamento, ao lado da Avenida Paulista, cubro o computador com a capa preta, apago todas as luzes, e olho para o lado mais escuro de minha rua. Ali, sinto a antiga visão do anoitecer, em esquinas perdidas na bruma da Rua do Cais ou da estação ferroviária de Campo Formoso. Vejo o mesmo negrume que fascinou uma criança acostumada com suaves remansos de riachos ou a distante estrela que pulsa nos confins do universo.

Nessas noites fictícias em São Paulo, mas recheadas de esperanças, sigo com o pensamento longe, na vida, em algum lugar do futuro.